Eliana Cárdenas


Eliana Cárdenas | 1951 - 2010

É mais comum que os discípulos escrevam as lembranças do velho mestre que este deva assumir a dura notícia do falecimento de um de  seus discípulos. É doloroso e triste assimilar a morte de Eliana Cárdenas, a principal historiadora da arquitetura de Cuba, quem voltado a Cuba desde Espanha, onde foi convidada a ministrar palestras em várias universidades desse país ao longo do mês de fevereiro - que inclusive foi anunciada uma delas, em Barcelona, no site Vitruvius há dias atrás -, teve um derrame cerebral em Madri que não foi possível reverter, e veio a falecer em 4 de março nessa cidade.

Há quarenta anos que Eliana e eu trabalhamos juntos no ensino da história da arquitetura e nas pesquisas sobre Havana. Quando começou o curso de arquitetura em 1967  a escola passava por um período de dogmatismo tecnocrático. Tinha sido “ocupada” pelo Ministério da Construção, e banindo o ensino cultural e teórico com a justificativa que em 1970 se desenvolveria a “Safra dos 10 milhões”; e que todo o esforço do país deveria se dedicar a esta tarefa o que não permitiria divagações intelectuais. Mas, um grupo de professores tentou resistir - Mario Coyula, Luis Lápidus, Emilio Escobar, Fernando Salinas, Roberto Gottardi e eu - e lutar pela continuidade do ensino dos cursos culturais, que voltaram a ser ministrados em 1970, quando, além, a “Safra”, não foi bem sucedida.  Nesse momento tivemos a apoio de alguns estudantes, e Eliana Cárdenas foi uma das principais protagonistas nesta luta, não somente pela sua paixão pela arquitetura - assumida como um fenômeno cultural -, mas também porque era uma dos poucas alunas que se interessavam na poesia, na literatura, na música, na arte, que foi uma vocação constante ao longo da sua vida. Os seus poemas foram publicados em Cuba e em revistas da América Latina.

Descoberto o talento de Eliana, em 1972 a convidei a participar na equipe de pesquisa que eu dirigia - o Grupo de Investigación de Historia de la Arquitectura y el Urbanismo (GIHAU) - , desenvolvendo o levantamento da Havana Velha e as pesquisas sobre a evolução histórica da cidade, que se concretizaram no livro La Habana. Transformación urbana en Cuba publicado pela Gustavo Gili na Espanha em 1974. Mas, como os estudantes de arquitetura, quando se formavam, tinham que trabalhar dois anos fora da Havana, Eliana se instalou em Santiago de Cuba - segunda cidade do país -, onde acabava de ser criada a Escola de Arquitetura. Ali, começou a ministrar aulas de história da arquitetura, e até 1977 ano em que voltou à Havana, e também assessorou os planos de reabilitação das cidades de Bayamo e Guantánamo. 

Ao voltar à Havana, imediatamente foi convidada a ministrar as aulas de história da arquitetura na Faculdade, e juntos criamos o curso de Teoria e Critica da Arquitetura, que nunca foi bem assimilado pelos alunos, e teve pouca duração. Mas, escrevemos um livro com a nossa visão “marxista-semiológica” que teve grande sucesso na América Latina e a nossa metodologia de análise arquitetônico foi aplicada no Equador - onde também foi publicado o livro - e na Bolívia. Todavia, hoje (2009), os professores bolivianos continuam assumindo esta nossa visão da crítica da arquitetura. Posteriormente, ela continuou aprofundando o tema, e em 1998, na Escola de Arquitetura de Guanajuato, México, publicaram o seu livro Problemas de teoria de la arquitectura. E também manteve os seus estudos literários, especialmente voltados na interpretação da obra d e José Martí, e que a permitiram obter diversos prêmios nacionais e internacionais: Em Cuba obteve o “Prêmio 13 de Março” da Universidadd de Havana (1980); e em 1996, o “Prêmio Ensaio “Razón de Ser” da Fundação Alejo Carpentier. E no México, o Prêmio Plural de Ensaio, em 1981.

Não é possível neste breve espaço enumerar todas as significativas contribuições de Eliana à arquitetura cubana. Ela lutou toda a vida pela significação cultural da arquitetura e pela valorização do patrimônio construído, em um contexto adverso, cheio de incompreensões, de desprezo pela arquitetura como manifestação artística, submetida as pressões tecnocráticas de um sistema onde a economia se transformou no valor essencial na avaliação dos prédios a ser construídos. Em cada evento, em cada seminário, e nos diferentes cargos que ocupou na União de Escritores e Artistas de Cuba, no Docomomo, no Icomos, na Comissão do Patrimônio de Havana, e na Faculdade de Arquitetura de Havana, ela sempre foi a defensora da procura da identidade nacional na arquitetura cubana, através da inovação e criatividade das novas obras construídas.

Com uma saúde precária, em uma vida humilde com escassas condições materiais, teve que lutar contra a dura adversidade da realidade cotidiana; e o que tem que se admirar em Eliana foi o seu espírito de luta, o otimismo, o entusiasmo de levar sempre à frente todas as iniciativas, com os sacrifícios que fossem necessários, na sua identificação total com a Revolução cubana. Assim, por anos dirigiu quase solitária a revista Arquitectura y Urbanismo da Faculdade de Arquitetura de Havana, e deixando a sua família e a sua vida pessoal em Cuba, esteve dois anos palestrando em Angola, desenvolvendo os estudos de Teoria e História da Arquitetura na Universidade “Agostinho Neto” em Luanda. Neste momento estava aprontado o seu segundo doutorado, e juntos iríamos escrever uma história geral da arquitetura cubana, desde as origens até hoje. E pouco antes de sair de Havana, ela entregou um livro com uma coletânea dos meus textos sobre o Caribe, com um seu longo e detalhado prólogo . O falecimento de Eliana vai criar um grande vazio na história e crítica da arquitetura cubana, que por longo tempo não vai ser preenchido. A tarefa de todos os que trabalhamos e compartilhamos a vida com ela, é agora, reunir os seus textos críticos e publicá-los, para que o seu esforço, a sua luta, e seu entusiasmo, e os seus ideais, permitam a formação das gerações futuras de arquitetos cubanos.

Roberto Segre

Rio de Janeiro, 5 de março de 2010.