A IMAGEM DA JUSTIÇA NO FÓRUM DE CUIABÁ

Figura 1- Vista do Fórum de Cuiabá

Foto: R. Castor, 2021.

Ricardo Silveira Castor[1]

José Afonso Botura Portocarrero[2]

NAMA – Núcleo Arquitetura Moderna na Amazônia[3]

Surpreende, negativamente, a reforma que emparedou o Fórum de Cuiabá, com seus altos muros decorados com aparato de luzes que se vê à noite. O edifício – cujos semelhantes são chamados de Palácio da Justiça no Brasil –, assume a aparência de um shopping center ou de casa de diversões noturnas, pelo colorido que mais o aproxima ao cenário de Las Vegas que de um centro cívico como o CPA – Centro Político-Administrativo do Mato Grosso.

Edifícios do judiciário são monumentos que representam um dos poderes da democracia. Os arquitetos, ao longo da história, procuraram atribuir importância e caráter próprios a esses prédios, coerentes com o espírito, a personalidade, a moral e a ética, o tempo e o lugar, simbolizando na paisagem urbana o que se processa em seu interior.

Uma pessoa, ao examinar Palácios da Justiça, constatará que predomina a sobriedade – que não se confunde com monumentalidade –, qualquer seja o porte da sede do judiciário. No passado, era usual que fóruns fossem desenhados com expressão dórica, um estilo despojado da Grécia antiga, firmado na Arquitetura como um cânone.

Assim como os cânones jurídicos se modificam com o tempo, acompanhando o fluxo da vida, das sociedades, das culturas, a Arquitetura se renova com os mesmos insumos que acionam a modernização das leis – e, muitas vezes, premonitoriamente.

O Fórum de Cuiabá foi projetado por uma equipe liderada pelo arquiteto Marcelo Suzuki, Professor da Universidade de São Paulo que, com colegas da Engenharia da USP, desenvolveram uma obra pioneira nos campos da Arquitetura e da Engenhara, em seus aspectos funcionais, estruturais e bioclimáticos.

Diferentemente da anacrônica ideia de que Palácios de Justiça são edifícios suntuosos, com acabamentos nobres e caros, ostentações que remotamente justificavam um espaço interior chamado “salão dos passos perdidos”, para afligir seus usuários, o Fórum de Cuiabá foi pensado como um espaço aberto, no qual horizontalidade e permeabilidade são metáforas do acesso ao Direito por todos.

O projeto primava pelo que na Arquitetura se chama de fluidez dos espaços, não só pela liberdade de circulação das pessoas nos ambientes internos e externos, como também pela abertura e integração visual entre o exterior e o interior. No clima cuiabano, as sombras e aragens eram parte da paisagem interna do Fórum, mediante elementos sombreadores nas fachadas e nas coberturas, protetores da inclemência do sol direto e que não impediam a passagem de brisas, contribuindo para refrescar naturalmente o ambiente. Se essas brisas não bastam para oferecer a sensação térmica que autoridades e membros do judiciário julgam como confortáveis para as atividades nos tribunais e salas de trabalho, a ventilação permanente nas áreas abertas diminui a carga dos equipamentos de ar-condicionado nos ambientes climatizados, reduzindo o consumo de energia do edifício como um todo. O arejamento é polissêmico: da justiça, da liberdade de circulação, da sustentabilidade do edifício – valores que a sociedade deveria eleger como prioritários no quadro atual de deterioração do diálogo entre Arquitetura e Natureza, sobretudo em um Estado-chave nesse quesito, como o de Mato Grosso.

Eram os ares que respirava o Fórum de Cuiabá em sua inauguração em 2005, como uma referência da arquitetura do judiciário dos novos tempos, que os recentes muros e vidraças em torno do Fórum passaram a sufocar. Um edifício conceituado para simbolizar a justiça para todos, sintonizado com as tecnologias contemporâneas de eficiência e sustentabilidade, assume agora a cenografia de um centro comercial murado, exuberante na noite como um cassino ou um shopping center. Substitui-se a dignidade arquitetônica original de transparência, luminosidade e sobriedade, por uma pouca condizente aparência de artificialismo e opacidade, mais afeita aos templos do consumo e da diversão. Condição absolutamente não apropriada com a imagem do principal edifício da Justiça do Estado de Mato Grosso.

O prédio do Fórum de Cuiabá ganhou o Prêmio Rino Levi na 17ª Premiação Anual do Instituto de Arquitetos do Brasil/Departamento São Paulo, de 2006, na principal categoria de obra construída. É mencionado como caso de sustentabilidade na página da ONG Green Nation <http://s3.amazonaws.com/gnfest/documents/arquivos/203/original_forumCuiaba.pdf>. Foi analisado na tese de doutoramento de Ricardo Silveira Castor, defendida na Universidade e São Paulo. Trata-se de uma obra de reconhecida vocação, importância e responsabilidade social e ambiental em sua nascença, no campo profissional e ambiental. A alteração no projeto original do Fórum de Cuiabá consternou o NAMA, como um retrocesso pela destruição de um patrimônio cultural mato-grossense.

[1] Arquiteto, Professor da Universidade Federal do Mato Grosso, Doutor pela Universidade de São Paulo.

[2] Arquiteto, Professor da Universidade Federal do Mato Grosso, Doutor pela Universidade de São Paulo. Autor do projeto duplamente premiado no Breeam Awards concedido em Londres, como melhor edifício sustentável nas Américas em 2018, pelo prédio do Centro Sebrae de Sustentabilidade de Cuiabá.

[3] NAMA – Núcleo Arquitetura Moderna na Amazônia, é um coletivo temático que reúne arquitetos, pesquisadores e artistas interessados na documentação e preservação da modernidade na Amazônia Legal, sediado na UFAM – Universidade Federal do Amazonas.

Nota de Falecimento: Professor Flávio Villaça

É com pesar que lançamos essa manifestação em razão do falecimento do arquiteto, urbanista e professor Flávio Villaça, ocorrido na segunda-feira, dia 29 de março de 2021, em São Paulo, aos 91 anos de idade.

Referência fundamental à análise da produção dos espaços urbanos, deixa um legado incomensurável, em sua atuação como docente na FAU USP, na Secretaria Municipal de Planejamento de São Paulo e como consultor em planejamento urbano em diversos órgãos públicos. Sua produção teórica,  dentre as quais se destacam “O que todo cidadão precisa saber sobre habitação” (1986), “Espaço intra-urbano no Brasil” (1998), “As ilusões do Plano Diretor” (2005) e “Reflexões sobre as cidades brasileiras” (2012), constituem referência obrigatória para aqueles que querem compreender a segregação sociourbana, característica perversa de nossa urbanização. Sempre disposto ao diálogo com colegas e estudantes, suas palestras eram verdadeiros eventos de engajamento em prol do compromisso do  social que deveria mover os arquitetos urbanistas.

“Sempre marcada por constante inquietação intelectual, a trajetória deste pesquisador nato, especialmente voltado ao tema do espaço urbano, está vinculada tanto a suas práticas profissionais quanto a sua trajetória acadêmica, antes mesmo de seu ingresso como docente na Universidade de São Paulo” – assim Sérgio Luis Abrahão e Silva Maria Zioni sintetizaram o curriculum de Flávio Villaça no artigo “Uma trajetória dedicada ao planejamento urbano brasileiro”, publicado no portal Vitruvius em 21 de novembro de 2020.
O Núcleo Docomomo Brasil manifesta seus pêsames à todos os familiares e amigos do querido e grande Professor Flávio Villaça.