Há pouco, partiu do nosso convívio, a arquiteta Zélia Pessoa de Melo Maia Nobre. Este contexto de adeus nos coloca a possiblidade de uma pequena homenagem a esta importante personalidade de Alagoas. Nascida em Nazaré da Mata, Pernambuco, em 1929, nos deixou no dia 23 de maio de 2023. Mas sua longa e fértil vida, transcorrida na sua mais expressiva parte em Alagoas, foi composta de muitos fatos significativos e que extrapolam a sua existência, convocando a própria história da cidade e do estado onde viveu para que sejam narradas junto à sua. Pois não só acompanhou de perto inúmeras mudanças arquitetônicas e urbanas ocorridas localmente, como ela mesma atuou na condição de projetista de inúmeros marcos da trajetória das últimas décadas da história deste estado, onde chegou na década de 1950. Veio de Recife, onde o curso de arquitetura fora iniciado em 1932 com a fundação da Escola de Belas Artes a partir da iniciativa de alguns artistas, mas só obtendo reconhecimento em 1945, e a ligação com a Universidade Federal de Pernambuco em 1958.
Fonte: acervo de família, divulgado nas redes sociais por Manoel Maia Nobre
Assim, desde estudante, Zélia acompanha os passos para a consolidação da profissão que está ocorrendo no Brasil partindo da experiência pioneira da Escola de Arquitetura de Belo Horizonte, fundada em 1930 e que, diferente de Recife, já de início se desvinculou da concepção de uma escola politécnica ou de um curso de belas artes. De fato, pouco depois, em 1931, o arquiteto Lúcio Costa apresentara uma proposta curricular para uma escola que já se posicionasse rumo à modernização de sua prática.
Portanto, Zélia está presente em um momento fundamental da história da arquitetura do país, que é aquela que se escreve a partir da formação profissional e que se vincula com o processo de modernidade. Esta herança não a abandonará. Antes de chegar a Alagoas, já vencera um contexto de presença majoritariamente masculina na escola de Recife. Também acompanhara momentos pioneiros da implantação da arquitetura moderna na capital, ao participar do Escritório Técnico da Universidade, que é conduzido por arquitetos de formação moderna como Mário Russo.
Quando chega ao estado vizinho, já encontra alguns arquitetos atuando, bem como engenheiros e desenhistas. Um pouco antes também uma importante figura feminina atuara em Maceió. De fato, uma das poucas arquitetas brasileiras cujo trabalho recebeu reconhecimento internacional: Lygia Fernandes. Ela também fez parte da primeira turma, agora da recém fundada Faculdade Nacional de Arquitetura no Rio de Janeiro, em 1945, e trabalhará com arquitetos como Jorge Moreira, Henrique Mindlin e outros. Mas a sua permanência em Alagoas será breve e a estruturação do lugar do arquiteto no estado demandará os esforços de Zélia e de outros profissionais como Joffre Saint´Yves Simon e Manoel Messias de Gusmão.
A inserção de Zélia na sociedade local, junto às elites, ajudou-a a galgar vários espaços importantes, não só ocupando cargos institucionais mas também como arquiteta de escritório. No movimento contínuo das renovações urbanas, será autora de edificações que por vezes surgem do terreno limpo, mas que em outras, decorrem da decadência ou substituição de edificações antigas. É o caso por exemplo, da reforma do famoso Parque Hotel, no centro da cidade, cercado de vários casarões antigos, bem como o prédio da antiga Reitoria da Universidade Federal de Alagoas que surge onde existira anteriormente a Escola de Aprendizes e Artífices.
Projetou residências, como a sua própria mas talvez a obra de maior impacto urbano tenha sido a sede do Alagoas Iate Clube. Em um momento em que os clubes se tornam um programa de grande peso, a arquiteta propõe uma edificação que parece flutuar no mar. O edifício se prende à praia por uma passarela e à distância, parece solto entre as ondas.
Foto da maquete do Alagoas Iate Clube e de sua implantação na Ponta Verde. Fonte: Rodolfo Torres
Mas cabe também inseri-la neste movimento de consolidação da profissão com o esforço de fundar uma escola de arquitetura em Maceió ainda na década de cinquenta, mas que não é bem sucedida. Será necessário aguardar o ano de 1973 para que ocorra a abertura do curso junto à Universidade Federal de Alagoas. Ecoa aqui a própria experiência que a arquiteta passou ainda como estudante, ao acompanhar os primeiros anos do curso em Recife.
A escola é recebida com entusiasmo. Os professores chegam sobretudo de Recife e trazem novas perspectivas em termos do que significava a profissão e, portanto, de sua prática. São traços destes primeiros momentos da escola a ênfase na condição nordestina, mas também a acentuação no urbanismo, a busca por estudos que se voltem para o próprio estado alagoano, colocando uma atenção inovadora à produção vernacular, à questão climática etc. Todas estas realizações não acontecem de modo fácil e comprovam a força da arquiteta em articular novos horizontes para o lugar que escolheu para viver.
E buscando observar agora o seu percurso a partir da outra ponta da sua existência, pode-se salientar que Zélia, nas últimas décadas de vida, teve a chance de presenciar o percurso do seu próprio trabalho, em seus erros e acertos. Acompanhou por exemplo, as intensas modificações no bairro Farol, na época em que chegou, um lugar de sítios e bangalôs, se tornando um dos mais privilegiados locais com relação à adoção da linguagem moderna, para onde ela mesma produziu muitos projetos, inclusive o da sua própria residência.
Fonte: ArchDaily Brasil, em foto colorizada por Rafael Almeida.
Por outro lado, no caso de seu projeto para o Alagoas Iate Clube, a arquiteta alcançou tempos onde a questão do meio ambiente tornou-se uma pauta mais robusta, levantando questionamentos a respeito de intervenções como a que realizou para pousar o prédio no mar. Também acompanhou o arruinamento da edificação e as tentativas de novos projetos para o local do clube, já que a sua completa erosão era condenada por supostamente trazer comprometimentos ao movimento do mar da Ponta Verde, cartão de visitas da cidade. Presenciou também o arruinamento da sua própria casa.
Fonte: Maria Angélica da Silva
Fonte: Maria Angélica da Silva
Mas também pôde assistir a diversas celebrações em seu nome. Em 2015, o Conselho de Arquitetura e Urbanismo de Alagoas (CAU-AL) criou o Prêmio Zélia Maia Nobre prestando dupla homenagem: à arquiteta: pelo empenho em ensinar e fomentar a formação de centenas de profissionais, e ao ligar seu nome a concluintes, que fizeram jus a uma formação bem sucedida recebendo um prêmio que leva seu nome. Em 10 de outubro de 2019 é o momento da própria UFAL render-lhe homenagem ao lhe conceder o título de Doutora Honoris Causa . Portanto, viveu todo um ciclo de uma existência que dialogou com a cidade de Maceió, que por isso, presta-lhe os devidos agradecimentos nos momentos próximos do final da sua vida.
Temos à nossa frente, a sua trajetória, que serve de baliza à história da cidade, em momentos fundamentais para a concretização da sua situação atual, contribuindo para conformar uma fisionomia urbana com predicados modernos mas que dialogou com as razões do lugar, tanto os advindos do meio físico, como das relações sociais. Assim, sua ação tensiona os modos locais mas ao mesmo tempo, sob determinadas circunstâncias, cede a eles.
Efetivamente, contribuiu nas articulações necessárias para que uma nova linguagem se apresentasse no ensolarado Nordeste. Linguagem que sinalizou universalmente um momento onde a arquitetura se fidelizava ao avanço das técnicas e novos materiais, mas que também se colocou, no caso de certas partes do Brasil, perante o paradoxo de ter que enfrentar contextos onde as novas sensibilidades ainda não reivindicavam propriamente o moderno enquanto gesto germinativo. Portanto, Dra. Zélia, como era chamada, parte, deixando um rastro complexo e inapagável no contexto alagoano.
Homenagem escrita pela Dra. Maria Angélica da Silva – Professora Titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Alagoas (UFAL)
Zélia, a quem pude chamar de amiga, pois nos conhecemos e nos amamos muito, no intervalo dos últimos anos de sua longa vida. Grande felicidade senti ao conhecer e conviver proximamente a ela, fazendo-me entender que, “para ser grande, há que ser pequeno”. De nada adianta uma espetacular arquitetura se não pudermos olhar o outro, ver suas reais necessidades, acolher e ajudar. É fato que Zélia veio a este mundo para fazer a diferença. Lembro-me de um dia, na véspera de um Natal, ela olhando para mim, perguntar: “Você acha que eu fiz algo importante pelo Estado de Alagoas, arrumando essa faculdade de Arquitetura?” E eu, já derramando lágrimas, responder: “Zélia, o que você fez foi importantíssimo, nem imagina o quanto, pois até eu, que não sou alagoana, estou sendo favorecida.” Há pouco celebramos, juntas, minha formatura. Olhando meu diploma, refirmo a ela aquelas mesmas palavras, com a prova do quanto fez a diferença para a arquitetura do Brasil. Por isso, mesmo sentido a saudade infinita de sua presença física, repito: Zélia está vivíssima em mim e em cada aluno da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFAL, que se torna profissional graças a ela. Muitas de suas excelentes obras arquitetônicas estão em ruínas, porque são raros os profissionais como ela, que olham e cuidam do outro. Faltou quem cuidasse da obra dela como Zélia cuidava de todos. Ah se eu tivesse chegado uns 40 anos antes na vida dela. Mas Deus é quem marca a vida e os encontros! Sou grata a Ele por nosso conviver. Amada Zélia , o teu maior legado é VIVO, vivíssimo! Cada aluno que se forma na FAU é um dos frutos dessa árvore frondosa e nobre! E frutos viram semente e brotam! Arquiteta Zélia Maia Nobre, doutora da beleza! Viva eternamente!
O ser humano mais lindo que Deus dividiu conosco. Saudades eternas ???