Sobre a aprovação do Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília
O Fórum de Entidades Em Defesa do Patrimônio Cultural Brasileiro manifesta-se contrário ao Projeto de Lei Complementar (PLC) 41/2024, que institui o Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília (PPCUB), encaminhado pelo Governo do Distrito Federal (GDF) e aprovado pela Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF) em 19 de junho. Em janeiro de 2024, o Núcleo deste Fórum no Distrito Federal já havia se manifestado contrário à maneira como o PPCUB vinha sendo elaborado. Não apenas mantiveram-se os graves problemas originais, que resultaram em outros problemas de mérito apontados por sucessivas análises especializadas, como também mais de cem emendas parlamentares de última hora alteraram substancialmente diversos pontos de seu conteúdo. Este Fórum propugna pela suspensão dos efeitos do PPCUB e por sua inteira revisão, a partir dos seguintes vícios fundamentais:
- Não foi adotado um modelo democrático de articulação institucional nem consultas sistemáticas à população. Em lugar de criar um Conselho Gestor do Conjunto Urbano de Brasília, envolvendo instâncias distritais, federais e da sociedade civil, cuja instalação é condição fundamental demandada pela UNESCO a ser atendida pelos conjuntos urbanos reconhecidos por ela como Patrimônios Mundiais, o GDF persistiu na elaboração exclusiva pela Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação (Seduh). Houve mais consultas aos setores empresariais que às representações comunitárias e instituições de exercício profissional consentâneas com as problemáticas da urbanização e da preservação do Patrimônio Cultural. Com exceção da fase preliminar (2009/2010), a elaboração do PLC do PPCUB não teve participação da sociedade ou articulações necessárias ao compartilhamento de responsabilidades. As poucas audiências públicas mal cumpriram as exigências processuais necessárias a este tipo de matéria, conforme denunciado por diversos parlamentares da CLDF que, por isso, acertadamente se manifestaram contrários à sua aprovação. Conforme já denunciado pelo Núcleo deste Fórum no Distrito Federal, “há sistemático isolamento dos setores culturais no âmbito do GDF. Por exemplo, foi alijado do processo de formulação do PPCUB o Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural do Distrito Federal (Condepac-DF), ‘órgão colegiado deliberativo, consultivo, fiscalizador e normativo, com composição paritária entre o Poder Público e a sociedade civil’, nos termos da Lei Orgânica da Cultura (Lei complementar n.934/2017). A própria Secretaria de Cultura e Economia Criativa (Secec), à qual se vincula este Conselho, segue sem corpo técnico de fiscalização e execução suficiente às suas imensas tarefas. Se o insulamento burocrático do atual modelo de elaboração do PPCUB excluiu até mesmo outras Secretarias do mesmo GDF, também o fez com o próprio Iphan, que acabou por furtar-se a realizar análise direcionada para autorizar ou aprovar, ou não, este PLC. Parece restar ao Iphan, e a outras instâncias de regramento ou curatoriais, manter suas normas e modos operacionais em âmbito apartado do Distrital. Naturalmente isso implicará em muitas superposições e conflitos legais em espaços que, em tese, deve se impor a lei maior, federal, por suposto”.
- O papel executivo excludente da Seduh subordinou ao ordenamento urbanístico os preceitos de preservação de nossos bens culturais múltiplos, que incluem dimensões ambientais, imateriais, arqueológicas, além de forçosamente necessitar de projetos e ações concretas para bens edificados específicos. A ausência do lastro participativo e diverso por um lado, e a ampla abertura de alterações modificadoras da paisagem urbana por outro, resultou num texto prolixo, eivado de conceitos repetitivos e sem nexos causais com as normas em seguida dispostas. Por exemplo o uso de terminologias tais como “espaços abertos”, “espaços livres”, “área pública”, “área verde”, “estrutura verde”, “sistema de espaços livres”, sem distinção e aplicabilidade.
- Tal processo equivocado resultou num Projeto de Lei Complementar (PLC) híbrido, em que prevalece quase exclusivamente um Plano Diretor de Ordenamento Territorial, sem promover nem prover a preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília. Como já explicitado em manifesto anterior, a contrafação entre determinações de ordenamento do solo e edificações e a preservação prescrita nas proteções legais — distritais, nacionais e mundiais — resulta num texto eivado de inconsistências conceituais, carente de instrumentos de preservação específicos, que acaba por não prover nosso Patrimônio de uma verdadeira política ativa que inclua sua gestão, sua conservação e seu eventual restauro e revitalização. Conforme apontado pelo Núcleo deste Fórum do Distrito Federal, em documento anterior, acredita-se que “um Plano de Preservação deve apoiar-se em outros instrumentos de regulação urbana ao mesmo tempo em que os subsidia, mas não deve confundir-se com os mesmos, uma vez que sua função articuladora, ativa e concreta demanda a proposição de instrumentos e ações reais de gestão, conservação e, se necessário, restauro”. Esta dualidade resulta numa fragilidade normativa oposta à segurança jurídica necessária tanto à preservação quanto ao desenvolvimento urbano.
- Verifica-se que a atual estrutura administrativa do GDF encontra-se desarticulada, pouco fazendo para a conservação de Brasília e do Distrito Federal como um todo. Há vícios no modelo de aprovação de projetos, frequentemente permitindo edificações que extrapolam os limites da legislação vigente; o Código de Posturas do Distrito Federal, cuja minuta foi elaborada pela própria Seduh em 2013, ainda carece de promulgação; a fiscalização é praticamente ausente e verificam-se constantes abusos materializados em obras irregulares, notadamente nos usos comerciais. Conforme recorrentemente apontado pelo Ministério Público, trata-se de permissividade e omissão fiscalizadora.
- Não há verdadeira preocupação e regramento da conservação da maior característica do Plano Piloto, seus espaços verdes, correspondentes a mais de 70% da área urbana total, embora o Zoneamento Ecológico Econômico (ZEE, lei distrital 6.269/2019) já tenha recomendado planos neste âmbito. Esses espaços contêm as infraestruturas públicas que viabilizam mobilidade e acessibilidade franca e todas as demais formas de qualidade urbana paisagística que também compõem a cidade preservada. Neste tema, é patente a ausência de compatibilização do PPCUB com a própria Legislação Distrital — como o ZEE ou o Plano Diretor de Arborização Urbana (decreto 39.469/2018). Ao propor-se, em linhas gerais, o adensamento da Bacia do Lago Paranoá, atualmente manancial de abastecimento de água público, coloca-se em risco a sustentabilidade do território da bacia do Lago.
- Causam estranhamento as justificativas apresentadas no projeto e nas emendas parlamentares, sistematicamente apoiadas em afirmações falsas de que este PPCUB será instrumento de preservação. Por essas razões, as entidades reunidas neste Fórum reiteram não reconhecer no PLC aprovado e em vias de sanção um instrumento adequado à preservação exigida e pressuposta.
Brasília, 28 de junho de 2024.
Fórum de Entidades em Defesa do Patrimônio Cultural Brasileiro
Assinam o presente documento:
- ABA — Associação Brasileira de Antropologia
- ABAP — Associação Brasileira de Arquitetos Paisagistas
- ANPAR — Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo
- ANPOC — Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais
- ANPUH — Associação Nacional de História
- CBHA — Comitê Brasileiro de História da Arte
- Centro Palmares de Estudos e Assessoria por Direitos
- DOCOMOMO Brasil — Seção Brasileira do Comitê Internacional para a Documentação e Conservação de Edifícios, Sítios e Conjuntos do Movimento Moderno
- FENEA — Federação Nacional dos Estudantes de Arquitetura e Urbanismo
- FNA — Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas
- FNArq — Fórum Nacional das Associações de Arquivologia do Brasil
- IAB — Instituto dos Arquitetos do Brasil
- ICOMOS Brasil — Comitê Brasileiro do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios
- SBS — Sociedade Brasileira de Sociologia
- TICCIH Brasil — Comitê Brasileiro para a Conservação do Patrimônio Industrial
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